Do PAIUB à Revista Avaliação
Por Dilvo Ristoff
“Gostaríamos de estabelecer relações sérias de convivência. Queremos ser submetidos à rigorosa avaliação institucional de resultados”.
– Antônio Diomário de Queiroz
(Do discurso de posse no MEC, como reitor da UFSC, em abril de 1992)
No início dos anos de 1990, os pró-reitores de graduação participaram ativamente da formulação do que ficou conhecido como o livrinho vermelho do PROGRAD – o Programa de Graduação do MEC. Entre os programas que compunham o PROGRAD estavam o Programa de Bibliotecas (PROBIB), o Programa de Informatização (PROINF), o Programa de Laboratórios Didáticos (PROLAB) e o Programa das Licenciaturas (PROLICEN). O Fórum dos Pró-reitores de Graduação (FORGRAD) trabalhava com o MEC em torno da ideia de que era necessário ter um norte para a graduação. Para o Fórum, isso significava dizer, entre outras coisas, que se investíssemos todos os anos, um pouco que fosse, em nossas bibliotecas, logo teríamos bibliotecas com acervos bons, atualizados e capazes de bem sustentar o ensino e a pesquisa; se investíssemos um pouco, todos os anos, em informática, em breve superaríamos o analfabetismo digital; se investíssemos todos os anos, um pouco que fosse, em laboratórios didáticos, em breve teríamos laboratórios de qualidade, atualizados e em pleno funcionamento. Por fim, que se investíssemos todos os anos, um pouco que fosse, na valorização das licenciaturas, em breve teríamos um setor se sentindo prestigiado, com melhor autoestima, com formação mais adequada para o exercício da profissão. E o Fórum alertava que, a continuar como estavam, nossas bibliotecas continuariam péssimas; os laboratórios didáticos ficariam sucateados; as deficiências na informatização nos condenariam ao atraso no uso das novas tecnologias; a procura pelas licenciaturas diminuiria ainda mais e os licenciados procurariam outras carreiras.
Com igual entusiasmo, e ao mesmo tempo, o FORGRAD trabalhava, ao lado da ANDIFES e da Secretaria de Educação Superior do MEC, na criação de um programa de avaliação, que veio a ser o Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras (PAIUB).
O PROGRAD e o PAIUB, como sabemos, tiveram vida curtíssima e, por assim dizer, morreram com a saída de Murílio Hingel do Ministério da Educação. Com a troca de governo, o MEC mudou de vinho para água. O PROGRAD foi extinto em favor de um empréstimo único a ser buscado junto ao Eximbank do Japão – recursos que, de fato, chegaram quatro anos mais tarde, quando muito do que havia sido solicitado já não era mais prioridade, e o PAIUB, como sabemos, apesar da ampla adesão das universidades públicas e comunitárias, foi abandonado e substituído pelo Provão.
A forte tendência privatizante que se instalou a partir de janeiro de 1995 escanteou, literalmente, as lideranças dos pró-reitores de graduação – a maioria de universidades públicas – que, de repente, sequer eram recebidos por membros da equipe do novo ministro. Havia uma clara rejeição dentro do novo MEC ao primeiro dos cinco princípios basilares do PROGRAD, que professava a “participação das IES na definição da política para o ensino superior do país” (ver o livrinho vermelho do PROGRAD). Este princípio, destacava o Programa, tinha o objetivo de evitar que as políticas institucionais sofressem prejuízos em função das constantes mudanças no ministério. Ouvia-se do novo ministro o mesmo cantochão que ouvimos hoje com relação ao Inep: “Até aqui quem fazia política educacional eram as universidades; agora quem vai fazer política educacional é o MEC. As universidades devem executá-la”. Era a versão atenuada do atual vírus discursal do “um manda, o outro obedece”.
O resultado disso todos conhecemos. As universidades públicas foram levadas a um acelerado sucateamento, passando por um período de vacas magras cuja gravidade a geração mais nova de professores, técnicos e estudantes sequer imagina: concursos que não eram autorizados nem mesmo para substituir os mortos e aposentados, corrida à aposentadoria provocada por mudanças nas regras do jogo, falta de recursos para pagar a conta da água, da luz, do telefone, falta de recursos para fazer a manutenção básica dos prédios, equipamentos e salas de aula, tudo isso acompanhado por uma multiplicação estonteante de professores substitutos.
O dia da criação da Revista Avaliação
É nesse contexto de ruptura com uma filosofia de trabalho e com o abandono dos princípios de um programa de avaliação em implantação que surge a Revista Avaliação.
Era abril de 1996, mais de um ano, portanto, depois da instalação do novo governo e os representantes do MEC apresentavam aos coordenadores de avaliação institucional das universidades do Norte e Nordeste as mudanças na avaliação que estavam em curso. Presentes estavam os membros do Comitê Assessor do PAIUB. Nós, membros do comitê, ainda tentávamos entender todas as implicações da Lei 9.131, de novembro último, que, entre outras coisas, criava o Conselho Nacional de Educação, em substituição ao extinto Conselho Federal, instituía a avaliação periódica e, especialmente, “a realização, a cada ano, de exames nacionais com base nos conteúdos mínimos estabelecidos para cada curso, previamente divulgados e destinados a aferir os conhecimentos e competências adquiridos pelos alunos em fase de conclusão dos cursos de graduação” (Art. 3º, § 1º da Lei no. 9.131, de 24 de novembro de 1995). Era o prenúncio do que viria a ser o Provão. Ouvíamos, pois, atentamente o que cada um dos diretores e coordenadores do MEC tinha a dizer sobre os rumos da avaliação. Discurso após discurso, uma coisa despontava, com mais e mais nitidez: o programa de avaliação ao qual havíamos dedicado tantos esforços nos últimos três anos estava com os dias contados. Alguns participantes, menos céticos e mais generosos, ainda acreditavam que haveria um redesenho e que o PAIUB sobreviveria. O entendimento predominante, no entanto, era de que o fim da avaliação institucional participativa – que tinha como um de seus princípios basilares o respeito à identidade institucional – estava sendo decretado ali mesmo e era preciso fazer algo. Queríamos, afinal, como afirmava o reitor Queiroz, rigorosa avaliação institucional dos resultados, não avaliação de rendimento estudantil. Não era, pois, admissível que aquela rica experiência coletiva na elaboração de uma política pública se perdesse, que aquele processo de sensibilização da comunidade universitária para a importância da avaliação, como mecanismo de afirmação de valores, de melhoria das atividades acadêmicas, de planejamento, de gestão e de prestação de contas à sociedade fossem assim tão facilmente desmerecidos e descartados. Como poderíamos resistir?
Imediatamente, voltou à discussão uma ideia que já estava sendo amadurecida há algum tempo entre os militantes mais aguerridos da avaliação: a criação de uma revista. Após o almoço do segundo dia do seminário, fizemos uma reunião em petit comité e começamos a transformar a ideia em proposta viável.
O principal já estava definido: o objetivo da revista seria criar um canal para a troca de experiências na área da avaliação institucional e, principalmente, de reafirmação dos princípios do PAIUB, defendendo a sua continuidade. Era, portanto, a criação de um canal de protesto contra a interrupção de uma política considerada importante para as universidades.
Precisávamos, no entanto, de muito mais do que objetivos para fazer a revista se tornar realidade. Tendo participado da criação, nos idos de 1979, da primeira revista da Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (que existe até hoje e da qual tenho grande orgulho, a revista Ilha do Desterro!), eu sabia das dificuldades de publicar os primeiros números e, principalmente, das agruras para garantir a continuidade. Eu tinha uma boa ideia de quantos carregadores de piano precisaríamos: um editor dedicado e com respeitabilidade acadêmica, um editor executivo sobretudo pragmático, uma boa equipe de apoio e, claro, gente que escrevesse artigos publicáveis. Propus então que José Dias Sobrinho, da Unicamp, pela sua destacada experiência na área da avaliação e pela sua participação em todo o processo de construção do PAIUB, fosse o editor, e José Dias, talvez por gentileza, me indicou como editor executivo. Não havendo outras candidaturas, aceitamos o desafio.
Tendo, recentemente, cuidado da produção e publicação do Relatório de Gestão do reitor Antônio Diomário de Queiroz (1992-1996), da UFSC, eu tinha uma ideia exata do custo de uma revista, semelhante ao relatório que carregava comigo e que apresentei ao grupo. Expliquei que uma revista com essas características – tamanho A4, com 80 páginas, papel cuchê, capa colorida, mais o pagamento de alguém para produzir a arte final (a arte da capa eu garanti que conseguiria de graça junto aos colegas do Centro de Comunicação e Expressão. Eu sabia que o professor Carlos Righi não me negaria um pedido desses) – custaria X, multiplicado por 4, outro tanto. Textos para o primeiro número eu tinha certeza de que já tínhamos.
Quando falei em quatro números ao ano, alguns protestaram e acharam difícil ou impossível, considerando as nossas outras tantas atividades acadêmicas. Insisti que fossem quatro números ao ano, pois nossa revista deveria, além de ser um canal de protesto e de resistência, ter a função de promover a sensibilização permanente da comunidade acadêmica para a importância da avaliação. Com apenas dois números ao ano, as pessoas facilmente esqueceriam da existência da revista e não produziriam artigos que problematizassem o calor político do momento. Como consequência, teriam pouca motivação para fazer o esforço necessário para ajudar no financiamento da revista. A ideia de quatro números ao ano, mesmo parecendo um sonho para alguns, foi vitoriosa. Como a metade do ano já se passara, decidimos publicar somente dois números da revista em 1996.
Ato contínuo, propus o que hoje pode parecer fora de propósito: se cada um dos presentes, cerca de 20 pessoas, se responsabilizasse pelo montante correspondente a 50 assinaturas da revista, conseguiríamos garantir a publicação dos primeiros quatro números. Eu já havia feito os cálculos do custo de cada assinatura. Para a minha surpresa, os presentes não só aprovaram a proposta, mas vários deles pegaram os seus talões de cheque e compraram na hora as suas quotas de assinaturas da revista – da revista que ainda não existia. E mais: todos comprometeram-se a conseguir mais assinantes.
O passo seguinte foi mobilizar os presentes ao seminário. Não é por acaso que a Carta do Recife, publicada por ocasião de encerramento do evento, fazia o seguinte chamamento:
1. Que sejam urgentemente asseguradas, junto ao Ministério da Educação, as condições de infraestrutura e apoio logístico para a otimização dos Projetos de Avaliação Institucional em andamento nas Universidades do País, permitindo seu acompanhamento;
2. Que sejam dadas as condições para que o Comitê Assessor e a Comissão Nacional do PAIUB possam assumir efetivamente a condução do processo;
3. Que sejam assegurados os repasses dos recursos financeiros às Instituições que tiveram seus projetos aprovados pelo Comitê Assessor;
4. Que sejam tomadas medidas para ampliar o âmbito de atuação do PAIUB, visando abranger um maior número possível de IES;
5. Que sejam realizados seminários nacionais e regionais com vistas à intensificação do intercâmbio das experiências no âmbito da avaliação institucional;
6. Que sejam promovidas oportunidades de envolvimento dos segmentos organizados da Comunidade Acadêmica Nacional (CRUB, ANDIFES, ABRUEM, ABESC, ABRUC, ANUP, Fóruns de Pró-reitores) e do MEC, no processo de discussão sobre os rumos e a operacionalização da Avaliação Institucional;
7. Que as Universidades apoiem, através de assinaturas e outras formas, a criação e consolidação da Revista PAIUB (Revista do Programa de Avaliação Institucional das Universidades Brasileiras).
Esta Carta de Recife foi aprovada por aclamação, na Reunião Plenária de Encerramento do II Workshop de Avaliação Institucional das Universidades do Nordeste e Norte.
E assim, com os cheques de pagamento antecipado das assinaturas no bolso e com o respaldo do Comitê Assessor do PAIUB e dos representantes das IES presentes ao evento, embarquei no dia seguinte para Florianópolis, decidido a viabilizar operacionalmente o primeiro número da revista o mais rapidamente possível.
Na semana seguinte, conforme combinado, o professor José Dias Sobrinho desembarcava em Florianópolis para definirmos as linhas gerais da política editorial, o conteúdo do primeiro número e acertarmos os detalhes operacionais sobre a editoração, produção, distribuição da revista. Naquele momento, já trabalhávamos com a certeza de que teríamos o apoio institucional da Unicamp e da UFSC ao projeto.
Lembrando o que dizem os gringos, “all work and no play makes Jack a dull boy” (“o trabalho sem prazer faz de Jack um menino chato”), decidi unir o útil ao agradável e levei o professor José Dias à bela ilha de Anhatomirim, que ele não conhecia. À época havia na ilha um bom restaurante – o Bananas. Fomos cedo pela manhã. O dia estava maravilhoso, o céu azul de brigadeiro e a paisagem, como costuma ser na ilha da magia, deslumbrante. Expliquei a ele o projeto de extensão da UFSC que recuperara as fortalezas de Florianópolis para o turismo e o ensino, contei o que sabia sobre o sistema de proteção representado pelos três fortes, mostrei onde as bruxas se reuniam nas noites de lua cheia, onde os opositores de Floriano foram fuzilados, o paiol da pólvora, etc. etc. Almoçamos no Bananas e, lá mesmo, depois da tainha escalada e do camarão, passamos o resto do dia discutindo o que veio a ser a Revista Avaliação. Além da escolha dos textos a serem publicados, definimos que a arte final, a revisão e a capa seriam feitas em Florianópolis, a impressão seria feita em Porto Alegre (na mesma gráfica que imprimira o nosso Relatório de Gestão) e a distribuição e o controle de assinaturas seria feito em Campinas. De modo que a Revista Avaliação já nasceu interinstitucional, inter-regional e interestadual.
No ano em que a Revista Avaliação completa, neste mês de junho, o seu vigésimo sexto aniversário, temos todos os motivos para estarmos felizes. Ela não só gerou uma vasta bibliografia sobre a avaliação, mas foi objeto de vários artigos acadêmicos e dissertações de mestrado. Ela gerou também livros que se tornaram marcos da resistência ao desmonte do PAIUB e de protesto contra o sucateamento deliberado da educação superior pública (Avaliação Democrática para uma Universidade Cidadã; Universidade em Ruínas na República dos Professores; Universidade Desconstruída, Avaliação e Compromisso Público: a educação superior em debate, entre outros).
Além de tudo isso, a Revista Avaliação completa este primeiro quarto de século de existência como uma revista Qualis – A1 na classificação da CAPES, ou seja, gozando de total respeito da comunidade acadêmica. Não é pouca coisa! São 26 anos, sem nunca atrasar uma edição. Tenho muito orgulho de ter participado, ao lado do professor José Dias Sobrinho e de outros, do momento de criação e também, durante vários anos, do processo de consolidação dessa importante revista.
Quando penso nos cheques que compraram a ideia de uma safra futura, lembro ainda, com enorme satisfação e profunda emoção, do semblante dos abnegados militantes da causa da avaliação que, naquele dia, se dispuseram a resistir e a propor novas ações, sem medo do ostracismo imposto pelas autoridades de plantão.
Que os atuais editores da Revista Avaliação consigam manter o apoio da comunidade acadêmica e garantir a sua continuidade e qualidade por muitos e muitos anos mais.
*Dilvo Ristoff: é doutor em literatura pela University of Southern California, nos Estados Unidos. Foi diretor de Estatísticas e Avaliação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), diretor de Educação Básica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e diretor de Políticas e Programas da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (SESu/MEC). Foi também reitor da Universidade Federal da Fronteira Sul. É autor e coautor de inúmeros livros, entre eles, Universidade em foco − reflexões sobre a educação superior (Editora Insular, 1999), Neo-realismo e a crise da representação (Insular, 2003) e Construindo outra educação: tendências e desafios da educação superior (Insular, 2011). Atualmente ministra aulas e orienta dissertações no Programa de Mestrado em Métodos e Gestão em Avaliação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a visão do INPEAU