Universidade e Gestão: a reflexão necessária
Por Pedro Antônio de Melo
Ao longo de minha vida acadêmica tenho repetido, exaustivamente, nas classes de mestrado e doutorado em Gestão Universitária, que “a Universidade deve estar sempre à frente de seu tempo”. Certamente, isto é fruto da paixão que nutro por esta instituição social milenar, como agente agregador, sistematizador e potencializador de conhecimentos que transformam a sociedade.
Notadamente, mais incisivamente, a partir do final da segunda metade do Século passado, vimos que os desafios impostos pela sociedade do conhecimento, nos dão conta de que a Universidade tradicional não está sintonizada em sua totalidade aos novos parâmetros globais. Antes da virada do milênio assistimos, como numa grande tela de cinema, a sutil mas radical passagem da Era industrial para a Era do Conhecimento, sobretudo com o sistemático crescente das TICs, com os avanços até então inimagináveis pela Internet, ao disponibilizar todo o conhecimento produzido pela humanidade com alguns cliques, e, com a expansão e popularização das mídias sociais que fomentaram uma sociedade mais crítica, vigilante e exigente. Na mesma direção, os meios de comunicação massivos invadiram lares, ambientes de trabalho e transformaram, radicalmente, indivíduos e a vida humana em sociedade.
Como autômatos inteligentes, seguimos os rumos ditados pelas tecnologias inovadoras, e, tantas vezes fomos protagonistas, nem sempre sabendo exatamente onde íamos parar. Fomos sutilmente arrastados por uma corrente invisível, indiferentes ao nosso papel no paradigmático Admirável Mundo Novo que se aproximava, preconizado por Aldous Huxley, em 1932. Foi como se a ficção científica houvesse seduzido seres humanos analógicos, colocando cunha no ambiente real, e forçando a transposição para o Mundo virtual, o “novo real”.
Nessa onda, a Universidade foi baqueada? Creio que sim. Desnorteada, talvez, mas não vencida. O questionamento do que se pode fazer possivelmente está muito mais direcionado ao como fazer. Como acompanhar os avanços promovidos tantas vezes pela própria Universidade, sem necessariamente ter de fugir aos princípios consolidados pelo crivo e rigor acadêmico. Será que conseguiremos vencer aos acenos poderosos e facilitadores de arranjos virtuais, sem deixar de lado práticas consolidadas pelo mundo do Ensino e da Pesquisa? Afinal, poderíamos perguntar, por que resistir se está tudo tão próximo e disponível, no Google! Só precisamos dedilhar neste universo de algoritmos, e ordenar a um robô que nos faça o serviço pesado, e pronto. Ai está todo o conhecimento produzido pela raça humana à nossa disposição. Lemos, decidimos, cortamos, enquadramos, sistematizamos, assinamos e publicamos numa revista científica reconhecida internacionalmente, para sermos aplaudidos e replicados por nossos pares.
Em função desta realidade, há insinuações de que a Universidade está definitivamente fora do foco, ultrapassada, difícil de ser carregada, está na UTI, e que o Google já assumiu seu lugar. Para quem vê de maneira reducionista a Universidade, como um lugar de “transmissão de ensino”, o que já seria um equívoco lamentável, talvez tenha alguma razão. Mas, ela é muito mais do que isto. Ela produz ciência, conhecimento novo, e constantemente se renova atraindo os melhores cérebros da sociedade, fortalecendo-se continuamente para enfrentar os novos desafios. É bem possível, que dai provenha sua verdadeira fortaleza.
A Universidade foi criada com objetivos difusos, às vezes dúbios e, notadamente, é avessa à mudanças muito rápidas. É sabido, que nos seus primórdios ela atendeu as demandas da Igreja e do Estado, interessados que estavam em fortalecer seus quadros profissionais internos e controlar as massas. De lá para cá, além de se preocupar com a pesquisa e a extensão, que dão suporte ao desenvolvimento científico e tecnológico, principalmente nos países emergentes, vem formando profissionais com perfil empreendedor, visando atender as crescentes necessidades de todos os setores da sociedade moderna, especialmente o empresarial. Logo, pressupõe-se que ela continua a desempenhar um papel importante no ambiente social contemporâneo, mesmo que haja vozes ressonantes, em contrário.
É neste ambiente diuturnamente provocante, extenuante, e ao mesmo tempo exuberante e rico, que navegam os principais protagonistas dessa instituição: estudantes, docentes, técnico-administrativos e gestores. Mas, para esta reflexão, queremos olhar um pouco mais diretamente para o último ator, o gestor. Aquele que, inexoravelmente, deve ser o vetor que levará a Universidade seguir firme em direção ao futuro.
Observa-se que, para cumprir seus princípios e finalidades, a Universidade precisa de um grande número de profissionais, para atuar nos mais diversos setores estratégicos de sua estrutura complexa, quiçá um pouco ultrapassada e que precisa urgentemente ser repensada. O que se nota, é que são poucas as instituições que preparam os colaboradores para assumir seus cargos de dirigentes. É usual, que a escolha desses dirigentes ocorra entre os profissionais com algum grau de conhecimento institucional ou setorial, especialmente aqueles com notório saber em suas áreas de atuação, ou ainda, pela simpatia, tempo de casa, capacidade de convencimento ou retórica acadêmica. Normalmente, não possuem o mínimo de experiência administrativa, e são desprovidos de conhecimentos técnicos necessários, para gerir uma instituição de tamanha importância no cenário social.
Na prática, os novos dirigentes são pinçados de laboratórios e salas de aulas. Alguns dos mais brilhantes profissionais em suas áreas de conhecimento são, quase sempre, democraticamente eleitos por seus pares, e elevados a cargos que sequer pensavam em assumir. Não raramente, sofrerão por meses ou anos até se adequarem às novas funções. Em geral, quando estão aptos para o exercício do cargo, são substituídos por outros, porque assim está definido pelo sistema democrático, que precisa ser periodicamente oxigenado. Ai está um paradigma difícil de solucionar na Universidade brasileira, especialmente a pública. Perdem-se excelentes docentes em salas de aulas e laboratórios e ganham-se inexperientes gestores, apenas para não se qualificar de outra forma.
Então, o que fazer para transformar esta problemática em solução, especialmente em tempos de pandemia, como a que vivemos atualmente? É evidente que não há resposta simples para temas complexos. Levemos em conta as dificuldades naturais para gerir uma instituição como esta. Mas, isto não nos impede de conjecturar que a Universidade precisa, urgentemente, buscar alternativas que levem a profissionalização do quadro de gestores que ocupam ou irão ocupar os cargos disponíveis na sua estrutura.
As Universidades mais importantes do Mundo não discutem mais este tema. É uma questão estratégica, e fator preponderante de sucesso. A decisão é simples: procuram e selecionam no mercado os profissionais do mais alto padrão, para gerir seus desafios. Se esses não dão a resposta esperada são, literalmente, mandados embora. No Brasil, muitas instituições privadas têm procurado alternativas como esta para solucionar os problemas na gestão, o que obviamente não ocorre tão facilmente na Universidade pública. Isto não significa dizer que ela não tem buscado alternativas. Pode-se destacar, por exemplo, como um caso exitoso a contribuição que vem sendo dada pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina, às demais instituições, desde os anos 60.
No cenário nacional e internacional a UFSC é, reconhecidamente, uma instituição que vem desenvolvendo a cultura da formação de gestores, ao longo de sua história. Apenas para ilustrar, podemos citar alguns indicadores desta prática, como o Programa de Formação de Dirigentes Universitários, implementado nos idos dos anos 60 e apoiada por organismos internacionais; o primeiro Seminário Internacional do país sobre Administração Universitária e a criação do Mestrado em Administração, com área de concentração em Administração Universitária, nos anos 70; a criação do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Administração Universitária – NUPEAU, hoje INPEAU, na década de 80; os cursos de especialização em Gestão Universitária nos anos 90. E, mais recentemente, em meados dos anos 2000, a criação do mestrado profissional em Administração Universitária, a linha de pesquisa em Gestão Universitária, no doutorado em Administração e, por último a Escola de Gestores da UFSC, que vem desempenhando um trabalho excepcional, junto às comunidades acadêmicas.
Nesse período, centenas de projetos com foco na área da Gestão Universitária foram desenvolvidos, milhares de artigos foram escritos, apresentados e publicados no CIGU – Colóquio internacional de gestão universitária, que é uma parceria do INPEAU com instituições latino-americanas, além de outros eventos nacionais e internacionais, e na revista GUAL – Gestão Universitária na América latina. Enumeram-se, ainda, as centenas de dissertações de mestrado e teses de doutorado, e pós-doutorados, cujos resultados vêm sendo implantados na UFSC e em outras instituições deste país ou fora dele, ou ainda, servindo de referencial na definição de ações estratégicas institucionais. Ou seja, centenas de profissionais foram formados para atuar como dirigentes junto a instituições de educação superior de todo o Pais. Estes fatos colocam a UFSC na posição de instituição pioneira na formação de gestores, no Brasil.
É importante assinalar, que toda esta produção sobre temas relacionados à gestão universitária, está disponível no ambiente virtual. É o maior acervo bibliográfico da área no País, e um dos maiores do Mundo. Indubitavelmente, estes trabalhos estão contribuindo com o aprofundamento da ciência na área de Adminsitração Universitária, e criando reflexões importantíssimas aos gestores atuais e futuros.
Estes fatos são indicadores de que há um espaço de profissionalização contínua ao processo de formação em Gestão, fortalecendo o “quarto pilar da Universidade”, ainda que, de maneira transversal. Como sustentáculo do Ensino, da Pesquisa e da Extensão, transforma-se em um componente fundamental para o enfrentamento dos novos desafios impostos pela sociedade do conhecimento. Portanto, entendemos que, a permanecer o tradicional status quo, relegando esta função a um espaço secundário, a Universidade continuará vacilante, com dificuldades para alcançar metas e atingir seus objetivos. Pressupõe-se, que uma instituição do porte da Universidade, que dia a dia vem se aprimorando na formação dos mais brilhantes profissionais para a sociedade, não deva ser administrada por amadores, mesmo os bem intencionados.
Frente a todos os desafios que são impostos à Universidade pelo novo normal, não sabemos se ela precisará seguir o raciocínio de “perder os anéis para preservar os dedos”, porque ainda há muito a ser preservado. Também não creio que ela ficará ao largo como um barquinho à deriva, ao sabor dos ventos, pois este comportamento renega sua natureza. Com o turbilhão, Ela deverá se redesenhar e construir um novo caminho, rever paradigmas e remover alguns comportamentos encrustados ao longo de sua História. E, ao se desfazer da velha roupagem, deverá içar velas, realinhar a proa, e preparar seus tripulantes e navegantes para suportar os fortes ventos que virão.
Ao despontar da Universidade para uma nova projeção rumo ao futuro resta saber, se neste novo navegar sobre prováveis mares turbulentos e desconhecidos, vamos entregar o leme a um barqueiro profissional ou amador. O tempo dirá!
*Pedro Melo: Diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos em Administração Universitária INPEAU e Chefe do Departamento de Ciências da Administração da UFSC – CAD.
Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a visão do INPEAU.